terça-feira, 15 de outubro de 2013

Uma noite em III tempos


Daquelas coisas que lhe rendiam o respeito temporário de alguma gente, apartou-se em uma noite de verão pleno, desatou seu bote e remou.
À tardezinha, a visão do porto se parecia à de pinturas renascentistas do paraíso, com pilares de luz descendo do céu até as águas. Nesta hora, passada a tormenta, por ali não se avista viv´alma. Os marinheiros e estivadores já se haviam recolhido, exaustos, em casa ou n´algum canto, saciados ou passados na cana. A cidade era escura e a ponte não estava. Pássaros da altura de anjos sobrevoavam o farol. Não se ouvia senão assobios da tormenta que lhe esperava, e os ecos de gritos e gemidos vindos das margens. Corre a lenda que pertenciam aos primeiros amantes desta terra, enfeitiçados pelo espírito dos índios que negavam a salvação. E que passavam a madrugada escondidos naqueles pântanos, torturando-se em devaneios carnais.
Certamente não imaginava relatos, fugas heroicas, retornos triunfais. Estas não eram coisas suas. Sem ardor se olhava a si mesmo, não mais que nos dias de missa ou de festança. De todo não era ranzinza. Sorria com frequência, de coisas que não se entendia bem. Casou-se algumas vezes. Mas era só com seus pensamentos. Seu cachimbo de horas vazias, de muitas horas...Dizem que tinha cisma com frases. Frase escrita em tudo quanto é papel. Às vezes à faca na mesa da oficina. Às vezes até no próprio corpo.
Noutra rua da cidade, chovia. Pisavam firmes os sapatos. Os passantes abrigavam-se sob as marquises. A um lhe ocorreu um café, a outro um conhaque. A maioria ocupava-se em danar o imprevisto. O relógio da Central do Brasil marcava seis em ponto. Reto feito uma lâmina. O vento veloz levantava as cortinas das casas. Fazia frio e trovejava.
Entre os homens de terno que vinham pela avenida, despontava um jovem singular. O único a optar pelo caminho desimpedido sob a chuva, pisando em poças. A tomar por sua cartola e as vestes negras sem medidas, bem poderia ser um artista, quiçá até mesmo um santo. Estava ensopado e convicto de sua imortalidade, e talvez nem tivesse onde cair morto. O que nenhum deles sabia, e nem mesmo o rapaz, é que àquela noite, a História da arte ocidental desde a Renascença até um quarto de hotel, o nomadismo urbano, as revoluções dos pálidos, as guerras intermináveis, o cinema, as praias do Brasil, existiam somente para ele e seu colete e seu chapéu que não existiam. Era uma noite de verão pleno e, dentro de algumas horas, amanheceria febril com o toque da musa.
Nesta mesma noite, em outro tempo, alguém toma a decisão e reescreve seu destino. Ela observava indiferente o café tremer dentro da xícara. Havia um dilúvio lá fora e uma fraqueza em suas pernas, em seu coração. Imobilizada, perdeu-se em sua própria região secreta e sonhou ver, por mera distração do tempo, as entradas e saídas de seu labirinto. Um mapa confuso de futuros possíveis rabiscados à mão. O café já escorria pelos panos e queimava de leve suas pernas. Bastou que deixasse a mesa e o mundo inteiro seria outro. A América já tinha luzes, mas a mata atlântica cresce por dentro da pele.


Guilherme Gonçalves



Guilherme Gonçalves ficou em segundo lugar na categoria prosa do 4º Prêmio Paulo Henriques Britto de Prosa e Poesia, organizado pelo PET-Let da PUC-Rio. 

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