sexta-feira, 26 de abril de 2024

Entrevista: Lorena Pimenta, atravessamentos pela palavra

por Anaili Sousa e Matheus Guariento


Lorena Pimenta, autora afro-brasileira de 31 anos, é formada em produção audiovisual. Publicou, em 2017, o livro de contos Juro, foi quase amor, pela Editora Transversal, e participou da coletânea Chorar de alegria, publicada pela Globo Livros. Carioca, canceriana e aberta a tudo o que a vida tem a oferecer. Gosta de observar o mundo e retratá-lo com poesia em suas histórias e textos. Nesta conversa com o Plástico Bolha, ela nos conta um pouco sobre a sua relação com a leitura e a escrita.

1) Como a literatura entrou em sua vida e como você se relaciona com ela hoje?

A literatura entrou na minha vida ainda criança quando uma vizinha, professora, me presenteou com um livro no meu aniversário. Na dedicatória escreveu que desejava que a leitura se tornasse parte indispensável da minha vida. Anos depois, emocionada, ela chorava na fila de lançamento da minha primeira obra — Juro, foi quase amor. O livro que ela me deu foi Os cavaleiros da távola redonda. Me conectei especialmente ao contexto de amores impossíveis. Aquilo me inspirou de alguma forma. Me trouxe identificação, adrenalina, paixão. De lá para cá, eu deveria ter uns 9 anos de idade, não parei mais de ler. A literatura, daquele tempo até hoje, é o modo que encontro de me entender e mergulhar no mundo. É como mapeio meu coração e dou nome aos meus sentimentos para vivê-los melhor. Muitas vezes, amadureço enquanto ser humano nas entrelinhas das obras. Aprendo com os personagens. Permito que os livros me leiam mais do que eu os leio. A literatura é uma cavidade do meu coração.

2) Dom, inspiração, trabalho, achado: nasce-se poeta ou torna-se poeta?

Acredito que a poesia está em todos, mas alguns decidem vivê-la. Falo da poesia da vida como um todo. Agora, enquanto profissão, é preciso muito mais que inclinação, dom. É preciso dedicação, estudo e disciplina. É preciso insistir e evoluir enquanto autor. Além de aprender sobre o mercado como um todo. Dizem por aí que escrever um livro é sempre mais fácil do que vendê-lo.

3) Sendo uma profissional da palavra, o seu olhar está sempre afiado, ou você consegue ser uma “leitora amadora”? Há um botão de liga/desliga? 

Ao trabalhar com livros, é impossível lê-los e não fazer determinadas análises ou pausar a leitura algumas vezes para anotar inspirações ou impressões sobre técnicas. Contudo, isso não impede que eu aproveite a obra como um todo e me entretenha com ela. Acho que é complementar. Talvez eu tenha aprendido a ler melhor ao escrever. São processos entrelaçados.

4) Você consegue separar a sua obra da sua vida? ou vice-versa? Fale um pouco sobre a sua relação de vida e obra, se elas se interligam para você ou não.

Minhas obras se interligam com minha vida por diversos motivos. Um deles é o recorte de ser uma mulher negra, lgbt+, por exemplo. Minha perspectiva sobre amor e outros sentimentos acabam tendo esse atravessamento. Assim como a construção de textos e personagens (estou trabalhando num romance agora). E na hora de compor determinados aspectos, por mais diferentes que tenham sido da realidade, não deixo de beber na fonte dos sentimentos que já experienciei ou tenho ânsia (ou medo) de experienciar.

5) Qual sua obra literária favorita?

Pergunta difícil. A mais difícil até agora (risos). Tenho algumas obras. É quase uma traição citar apenas uma. Então, deixarei três: Hibisco Roxo, de Chimamanda [Ngozi Adichie], Caderno de um ausente, de [João Anzanello] Carrascoza; e A máquina de fazer espanhóis, de Valter Hugo Mãe.

6) Lorena, sabemos do seu lindo trabalho na coletânea Chorar de alegria. Você pode nos dizer qual é o seu texto favorito do livro e por quê? Como foi escrevê-lo? O que te inspirou? E como você olha para o texto hoje em dia?

“Quando o mar virou gente”. É um texto que me traz nostalgia. Tem paixão, mas, ao mesmo tempo, é dolorido. É a descrição do processo de reconhecer o fim, o desamor e nomear sentimentos. Escrevi numa tacada só, com o peito transbordando. Foi como correr e colocar lágrimas no mundo através do suor. Me inspirei numa antiga paixão. Olho com alívio por estar vivendo um amor saudável, calmo e gostoso. E também com alegria por ter evoluído tecnicamente, mas, ainda assim, ter muito carinho por tudo o que foi escrito ali.

7) O que está lendo agora? O que indica como leitura para o momento atual?

Terminei de ler Nunca vi a chuva, do Stefano Volp, e estou no finalzinho de O quarto de Giovanni, do James Baldwin. Não sei se indicaria um livro em específico para o momento atual, mas diria para as pessoas ficarem ligadas no trabalho dos autores que estão surgindo. É importante ler clássicos, mas também é importante dar valor ao que está nascendo agora. Acredito que todo autor traz certo retrato de sua geração. E, é claro, complementaria dizendo para buscarem diversidade nas leituras. Leiam autores negros, indígenas, lgbt+. Leiam mais mulheres. Leiam mais autores latinos. Gastem realmente um tempinho na busca do que pode interessá-los em vez de seguirem sempre pelo mesmo caminho.

8) A literatura é, por vezes, considerada como escape da realidade e, outras, como forma de abrir nossos olhos para suas sutilezas. Como lida com essas percepções em sua própria escrita?

Acho interessante encontrar um meio termo. Trazer temas atuais, orientar pessoas, trazer à tona problemas sociais, mas com leveza e humanidade para que gere empatia. Assim como colocar respiros dentro das obras. Acredito que a empatia possui um poder imenso de chocar pessoas. De fazê-las pensar e mudar de um jeito mais intenso e rápido. Não existe apenas um jeito de contar determinadas histórias, sabe? O que tenho visto agora no trabalho da maior parte dos novos autores negros é justamente isso. Abordar temas importantes sem excluir outros aspectos que são tão comuns à vida de todos. Tenho buscado esse caminho no meu atual trabalho, que está em andamento.

9) Quais as qualidades de um bom leitor?

Sentir o livro. Permitir que a obra te leia em vez de apenas lê-la. Não ter pressa, mas interesse.


Esta entrevista foi realizada como parte das atividades de práticas extensionistas realizadas junto aos alunos da graduação em Letras da PUC-Rio, sob a supervisão da professora Helena Martins e com a coordenação de Suzana Macedo e Lucas Viriato. 

quinta-feira, 25 de abril de 2024

Avarandado, de Matilde Campilho

Quarta nota para
a manhã infinita:

Afinal o grande amor
Não garante nada mais
Do que as 12 graças
Desdobradas pelos
Corredores do mundo
Agora isso é mais
Do que suficiente
E apesar dos bofetões
Do tempo invertido
Apesar das visitas 
Breves do pavor
A beleza é tudo
O que permanece


Matilde Campilho

quarta-feira, 24 de abril de 2024

Um poema de Naaman


Nunca é tarde
Para curtir a tarde
Na graça do agora.

Portanto,
Caminhe.


Naaman

terça-feira, 23 de abril de 2024

para um homem comum


amanhece na sexta da paixão
e uma prece me ocorre everyman
tão doce uma fissura uma aflição
à la philip roth à la saul bellow
quantos anos mais tola fixação
fraca fístola de rimas incompletas
e manuais de poesia obsoleta
com poemas do ordinário do amor
percebe ter ido embora a paixão
sem nem ao menos vc me dizer
eu te amo mas não vingou
acontece pode acontecer tchau
vc partiu e o tempo parou
vc voltou e o tempo se suspendeu
meu ex-amigo meu ex-amante
meu everyman meu judas judeu 

Larissa Lins

segunda-feira, 22 de abril de 2024

Um poema de André Capilé


para o búfalo
impaciente
não há bússola

ainda que

fareje
ou
pressinta

a coisa

André Capilé

domingo, 21 de abril de 2024

Evangelho segundo o pecador


me quero aberta em cálice e vinho e pão
           fenda rasgada de ritos

hábito deitado à fogueira
onde abrasam as peles recém-expostas

a carne viva pulsa porque viva
porque crua porque fera e primeira mulher
            serpente e desfrute

me quero imersa corpo inteiro no indevido
lambendo o caminho desviado
         com a mesma língua
         dos cânticos

o sacro e o santo
molhados da espera
com a sede dos abstêmios
e dos crédulos em desgraça

         e eu graal sacrílego
                 estou nua e disso não me envergonho


Milena Martins Moura

sábado, 20 de abril de 2024

UMA APRENDIZAGEM TRANSCULTURAL NOS CADERNOS DE GUIMARÃES ROSA, de Marília Rothier


As páginas, que se seguem, buscam ensaiar, através do enfoque microanalítico, uma reflexão sobre a literatura, enquanto espaço possível para o estabelecimento de trocas interculturais, na contramão dos modelos hegemônicos vigentes. Como parte da tendência contemporânea de inserir a interpretação literária no âmbito complexo da cultura, a trilha escolhida foi a dos estudos latinoamericanos, onde se destacam os trabalhos de Garcia Canclini e Martin-Barbero, especializados no exame das práticas híbridas, resultantes das negociações entre as matrizes populares, as eruditas e as midiáticas, detentoras das técnicas de divulgação. Tomando, como referência, as análises do artesanato, do circo, da canção ou dos melodramas radiofônico-televisivos, desenvolvidas por esses autores, procurou-se rastrear processos de construção do literário, identificando tramas intertextuais, as mais heterogêneas, que não só desmentem o isolamento das arte erudita experimental, como também desvendam as possibilidades e os perigos de sua circulação nos meios de massa.

A aproximação do foco analítico de um fragmento-amostra — recortado do conjunto de textos publicados e de seus respectivos proto-textos (levantamentos, anotações, rascunhos) —, visa o emprego simultâneo das técnicas decifratórias aplicadas ao acervo documental de escritores, e dos métodos político-interpretativos, com que se desvendam os conflitos, adaptações e mudanças do tecido multicultural. No âmbito brasileiro, costuma-se apontar Guimarães Rosa como exemplo de escritor moderno que desenvolveu sua tarefa com base numa pesquisa etnográfica – afirmativa confirmada por seu arquivo pessoal, sob a guarda do Instituto de Estudos Brasileiros da USP. Este foi o acervo do qual se isolaram algumas seções, considerando-as enquanto fragmentos de um hipertexto – miniatura do hipertexto da cultura brasileira --, para experimentar um tipo específico de close reading, o que combina a exibição ampliada do detalhe com o confronto minucioso de suas partes componentes.

A par da figura beletrística de um Guimarães Rosa, poliglota, inventor de estilo personalíssimo, artificioso e difícil, surge, periodicamente, na mídia, a imagem quase folclórica do viajante das trilhas sertanejas, na companhia de cantadores e boiadeiros — estes, depois celebrizados como modelos para as adaptações televisivas e cinematográficas das “estórias”. Os estudiosos contemporâneos, inconformados com esses estereótipos, que anulam a força questionadora da escrita rosiana, empenham-se em investimentos interpretativos, capazes de atualizar sua fortuna crítica.

As viagens pelo sertão, registradas em foto-reportagens e romantizadas nos livros didáticos, merecem resgate, porque correspondem a um momento capital na trajetória de Rosa. Na virada dos anos quarenta para os cinqüenta, depois da publicação de Sagarana (1946), este cuidou de profissionalizar seu trabalho. Como já vinha estudando, nos livros e nos museus europeus, a tradição épica culta, lançou-se à pesquisa sistemática da mesma tradição, na linhagem popular sertaneja. A etapa decisiva dessa pesquisa aconteceu em maio de 1952, quando o escritor atravessou, durante dez dias, os gerais mineiros, acompanhando uma boiada conduzida pelo vaqueiro Manuelzão. Como registro do trajeto, compôs-se um diário minucioso, posteriormente retrabalhado sob a forma de proto-textos das estórias em preparo. Aí, o material colhido na pesquisa de campo vai-se superpondo à reserva de leituras, acumulada pelo escritor. Entre as pastas, catalogadas, no IEB, como “Estudos para a obra”, acham-se quatro [E-26, 27, 28, 29] referentes à “Boiada” e uma, contendo amplas notas de leituras feitas entre 1948 e 1950 [E-17], intitulada “Dante, Homero, La Fontaine”. Em artigo sobre esta última, Ana Luiza Martins Costa (1997-1998 e 1999-2000) localiza, nas narrativas rosianas, a apropriação adaptada da épica clássica, não só como modelo das “virtudes heróicas” mas também como alargamento de possibilidades lingüísticas, no uso de intercalações, imagens múltiplas e principalmente “epítetos sintéticos”, “transcriados” em português.

Se, como resultado da reelaboração do diário da viagem, o capataz dos vaqueiros foi transformado no protagonista de “Uma estória de amor (Festa de Manuelzão)”, é o guieiro e cozinheiro Zito que melhor duplica a figura do escritor, pois, “dado em poeta”, levava, também, um caderno, onde registrava, em quadras, os sucessos do percurso. Entre os manuscritos de Guimarães Rosa (em família, Joãozito), onde há freqüentes transcrições das falas e trovas do guieiro-vate (“Vou contar um caso / Os senhores prestem atenção: / De uma saída da boiada / Da casa do Manuelzão.”), encontra-se, preservado, o próprio “caderno de Zito”.[E-26] Se o cânone ocidental aponta Homero como o transmissor, por excelência, do saber coletivo de seu povo, o estudioso da cultura rural brasileira encontra, nessas trovas, o modelo “dos epos das boiadas” – registro ritmado da experiência atual à maneira das lendas sertanejas. Além de observador e artista, Zito era dotado de “senso-de- humor”, o que revela sua co-autoria, por exemplo, de “O recado do morro”, novela de uma viagem, em cuja trajetória, como naquela da boiada, sempre se avistava o Morro da Garça. Compondo a novela, lê-se, em tom cômico-sério, uma espécie de disputa entre saberes: de um lado, o cientista alemão admira os elementos mais corriqueiros da paisagem para espanto e galhofa dos camaradas geralistas; de outro lado, moradores bobos ou meio malucos sustentam profecias, creditadas à voz do morro, que são desconsideradas pelo padre e pelo fazendeiro. Esse tipo de narrativa, que propõe enigmas e experimenta possíveis respostas — onde se conjugam a percepção estetizante, a intuição fantasista e o raciocínio especulativo —, foi certamente aperfeiçoado na convivência do escritor culto com sertanejos como Zito. Na entrevista a Günter Lorenz, Guimarães Rosa faz questão de confessar que, quando perseguido pelas dúvidas, conversa “com alguns dos velhos vaqueiros de Minas Gerais, que são todos homens atilados” ( Coutinho, 1983: 79 ). Ao longo da obra e da variedade de documentos, que apresentam seu processo de composição, fica patente o alto conceito atribuído, pelo escritor, à cultura sertaneja. Seu maior elogio aos mestres do saber ocidental – Dante, Goethe, Dostoievski – é considerá-los nascidos no sertão ( 85 ). Em termos de hoje, pode-se dizer que, aí, se opera um tipo de transculturação, independente da hierarquia hegemônica. Nos meados do século XX, quando o Brasil – como toda a América Latina – ocupava-se das reflexões acadêmicas contra o sub-desenvolvimento e das metas governamentais progressistas, nunca é demasiado ressaltar a atitude contradiscursiva de Guimarães Rosa, que se instrumentalizou com os jogos lingüísticos da vanguarda para, reacionariamente, reinserir a enunciação coletiva da épica no espaço do romance experimental. Buscando a co-autoria dos aedos gregos e medievais, tanto quanto a dos cantadores de feira e poetas-boiadeiros do sertão, logrou “introduzir uma lacuna não-sincrônica, incomensurável, no meio do contar histórias” ( Bhanha, 1998: 227 ). A sua maneira, o escritor antecipava, assim, o diagnóstico e as alternativas para a crise da modernidade. Sua atividade de pesquisador da sabedoria anti-histórica dos mitos e provérbios não é mais interpretada, hoje, como esteticismo alienante, mas como “performance” próxima à do artesanato e do melodrama dos hispanos, que trabalham suas matrizes arcaicas, através de processos eruditos ou midiáticos, como forma de resistência cultural.

As estratégias narrativas, aprendidas e adaptadas por Guimarães Rosa, podem mostrar-se bastante surpreendentes. Enquanto combinava o ritmo das quadras de Zito com o esquema sonoro da Ilíada, ia-se familiarizando com diferentes “retratos do Brasil”, produzidos desde o tempo das expedições científicas estrangeiras até Euclides da Cunha. Simulava querer extrair, de toda essa extravagante bagagem de informações, um saber atemporal e transcendente, mas, de modo sutil, produzia uma interferência na história presente, subvertendo projetos políticos de seus contemporâneos e pondo em questão a racionalidade prática estabelecida. Observem-se, por exemplo, suas relações com o velho amigo Pedro Barbosa, fazendeiro e empresário bem sucedido.

Colegas da Faculdade de Medicina e companheiros de pensão em Belo Horizonte, Pedro Moreira Barbosa e Guimarães Rosa corresponderam-se durante trinta e três anos. Pelo assunto da maior parte das cartas, sabe-se que, à medida que ampliava suas empresas, Barbosa ia-se tornando uma espécie de conselheiro econômico do escritor, que aplaudia, num tom entre invejoso e irônico, a riqueza do amigo. Ora, Pedro Barbosa, o homem de negócios, é justamente o escolhido para fornecer material informativo para a construção literária de um bobo – tratador dos porcos na fazenda —, que, como personagem-título do conto “Mechéu”, põe em questão, com seu comportamento desconcertante, toda a lógica da propriedade lucrativa. Antes de dizer de que forma Pedro Barbosa tornou-se co-autor da estória de Tutaméia, é interessante lembrar o convite, feito por ele a Rosa, no final de 1945, para uma viagem à Fazenda das Pindaíbas, em Paraopeba. Esse convite resultou na primeira excursão de pesquisa local sistemática, descrita, pelo próprio escritor, como “oportunidade para penetrar de novo naquele interior nosso conhecido retomando contato com a terra e a gente, reavivando lembranças, reabastecendo-[se] de elementos, enfim, para outros livros.” [Carta ao pai, 6/11/1945]

No arquivo do escritor, podem-se ler, compondo a pasta E-26 – “Notas da grande excursão a Minas” —, os registros, transcritos e já em processo de reelaboração, daquela estada nas Pindaíbas, onde um certo Tio Moreira chamou a atenção do escritor, autodefinindo-se, proverbialmente: “Moreira racha mas não quebra!” A maior parte do material recolhido diz respeito ao trato com os bois e à sabedoria tradicional da região, incluindo ditos, cantigas e festas cíclicas, como o batuque e a folia de reis. Mas é possível que, em meio a sua tarefa de etnógrafo amador, Rosa tenha-se deixado fascinar pelo apego à rotina diária e pela expressão intensa e enraivecida de Mechéu. Tempos depois, preparou um verdadeiro questionário sobre a aparência, hábitos, gostos e idiossincrasias do agregado “semi-imbecil” e enviou-o ao amigo Pedro Barbosa. A partir das respostas do empresário, foi construindo – como atestam as anotações dos Cadernos de Estudo 6 e 21, guardados no arquivo – a personagem e sua trama.

Limitado e ridículo, mas dotado de incompreensível dignidade, Mechéu suscita o riso e a reflexão, pois, se repete, em relação ao Gango (outro bobo da fazenda), a mesma atitude de desprezo superior com que o tratam, acaba perdendo toda a energia quando o Gango morre. A linguagem da narrativa impregna-se do mistério, que a épica – na versão culta ou popular – tem a tradição de perscrutar, pelos caminhos do maravilhoso e do humor. Nesse caso, “Mechéu”, o conto e a personagem, aproxima-se de “O recado do morro”, que reúne sete figuras excepcionais – bobos, loucos, criança e poeta – na função de receptores e transmissores da mensagem cifrada referente à vida e à morte. Assim, a temática e os processos de composição dos textos de Guimarães Rosa concentram-se no comportamento dos indivíduos marginais, que passam mensagens, ajudando a preservar uma sabedoria ameaçada. Trata-se de uma sabedoria composta de ruínas de diferentes culturas, desqualificadas ou esquecidas. Para que o escritor moderno possa apreender esse recado híbrido, é preciso servir-se das vozes mais improváveis e contraditórias. Se o vaqueiro trovador surge como emissário direto das palavras de sua comunidade, um empresário de raízes rurais pode ser levado a comunicar, mesmo involuntariamente, saberes regionais alheios a sua atividade. A centelha do humor, que transpõe o impasse, também resgata os saberes minoritários.

Guimarães Rosa desempenha o papel do intelectual que se prepara, no ambiente do conhecimento erudito moderno, para um trabalho ousado de desconstrução dos valores hegemônicos, tanto estéticos como epistemológicos. Recorde-se que sua tática envolve memória, invenção, raciocínio lógico e fantasia intuitiva, justamente para explorar os conflitos entre esses campos de produção dos artefatos culturais. Como se trata de tarefa gigantesca, o escritor, ambicioso e arguto, usa a artimanha de convocar, informalmente, uma série de parceiros para a boa realização de seu objetivo. No resgate da multiplicidade anônima dos transmissores do legado épico, a narrativa rosiana identifica alguns sujeitos com cujo discurso vai produzindo os fios de sua trama. Cada um desses, como representante de um tipo de estória ou cantiga, tem sua figura fundida à imagem do escritor, que, assim, assume diferentes faces, simultâneas ou sucessivas – a erudita, de “ledor de Homero”; a nacional, de discípulo de Euclides da Cunha; a boiadeira, andarilha, imitada do admirável guieiro Zito; e a de observador de seres excepcionais, espertamente captada num descuido do fazendeiro-empresário Barbosa. Somando-se a essa lista, outro alter-ego exige atenção cuidadosa, pois, sendo a presença mais constante na correspondência arquivada do escritor, torna-se figurante quase imperceptível na obra publicada. Trata-se de Florduardo Rosa, o pai de Joãozito, a quem este, por meio da troca de cartas, transforma no seu principal fornecedor dos casos do sertão.

Comerciante por profissão e caçador para diversão, nem analfabeto nem culto, Florduardo ocupa o posto estratégico de mediador entre os mediadores. Pela via da familiaridade, supre o filho literato de matéria narrável, quando este não pode sair a campo para suas observações etnográficas. Torna-se, assim, uma espécie de fonte secundária, não só porque registra sua experiência por encomenda, mas porque, com pretensões a bom contador de estórias, já apresenta um texto pré-elaborado. No trato com o discurso do pai, revela-se um aspecto interessante do Rosa-filho: quando jovem, João distanciou-se do modelo paterno para tornar-se capaz de receber e gerir uma herança – exemplares da épica sertaneja, preservados por narrador experiente – cuja enorme riqueza, o pai mesmo não poderia calcular. Nas raras entrevistas, o escritor demonstra, sutil e respeitoso, sua rejeição de menino às ordens do pai; na maturidade, no entanto, com esperteza produtiva, cultivada de propósito, estreitou relações epistolares com aquele sertanejo semi-letrado, que o acaso batizou com o nome peculiar de Florduardo Pinto Rosa. Incentivando o pai a colaborar no empreendimento literário, reconhece seus dotes narrativos: “Gosto muito do jeito d[e Papai] escrever (...). Fico pensando que a minha ‘bossa’ de escritor eu herdei dele, que maneja a pena com tanta facilidade, personalidade, vivacidade e graça.” [carta ao pai, 13/09/1962] Em quase todas as cartas, há comentário sobre as notas enviadas e pedido de outras: “Apreciei, muitíssimo, as notas que o senhor me mandou, sobre os enterros na roça. Aliás, o senhor não imagina como têm valor para mim essas informações. Pena é que o senhor não mande delas freqüentemente.” [9/7/1955]

As técnicas redacionais de Florduardo são dignas de comentário. Fica patente sua preocupação em distanciar-se da linguagem oralizada, variando sinônimos, usando torneios humorísticos e maneiras de produzir realce. Quando narra o primeira dos seus “três contos do papagaio”, descreve o dono do “bichinho” treinando-o com o propósito de “auferir alguma coisa que lhe avolumasse o bolso”. Lembra um freguês beberão, que o perturbava, nos tempos de comerciante em Cordisburgo: “Ai de mim o dia que o Tio Inocêncio estava de folga ou nos azeites e que resolvia sangrar a coruja encostado no balcão!...Santo Deus!...” Se colecionava provérbios antigos, metáforas pitorescas e expressões locais, a pedido do filho literato, como atestam os exemplos anteriores, não se contentava em simplesmente empregá-los, fazia questão de montar combinações dos mesmos, deixando na frase a sua própria marca. É o que se destaca na maneira de identificar de onde os ciganos traziam seus costumes: “lá de sua terra natal, lá da Sérvia ou lá dos calcanhares onde o diabo perdeu as botas.” Mostrando-se tão cioso de seu estilo, não deixa de comentar a produção do filho, onde não lhe passa despercebida a referência discreta, com que aquele o homenageia, através de um figurante de “O recado do morro”. Na carta de 27 de junho de 1956, acusa o “recebimento dos belos volumes do Corpo de baile e de Sagarana com sua roupa nova.” Depois acrescenta: “Tenho gostado muito do novo livro, do buriti bom, do buriti grande, apesar de que você não falou no buritizinho das mulatas, etc. Você escreveu muito, botou bastante malagueta no guisado, Frei Florduardo, etc.” [Pasta 42]

A tradição narrativa de encaixar estórias, umas dentro das outras, ou de ir desenrolando o fio das associações de casos está presente nas notas de Florduardo; por exemplo, quando contrasta os ciganos antigos e os modernos, não deixa de enxertar a estória do velho “cego de um olho”; também, na narrativa de suas caçadas, um episódio emocionante sempre puxa outro, engraçado ou inacreditável. Aí, certamente, Guimarães Rosa encontrou subsídio para revitalizar aquelas técnicas ancestrais. Mas, além da técnica ou dos assuntos encomendados, o escritor deve ter assumido para si a preferência do pai pelo enfoque de personagens engraçadas e incômodas, que brigam por seus desejos, mesmo na contramão do deboche e da exploração social. A constância com que Mechéu tomava-se “por infalível noivo de toda e qualquer derradeira sacudida moça vista”, assim como a “paixão” do Catraz — um dos sandeus, que transmite “o recado do morro” — pela “moça da folhinha” correspondem a adaptações e desdobramentos da narrativa em que Florduardo acompanha os lances do namoro, que o preto Tio Inocêncio imagina manter com uma das filhas de D. Isabel, “gente simples e boa”, moradora da roça. [Pasta 42]

O escritor considera as anotações de Florduardo como objeto de trabalho constante, no processo de produzir suas próprias narrativas. É o que diz, na carta de 5 de julho de 1956, a propósito do recém-publicado Corpo de baile: “Como o senhor não deixará de ter notado, ele está cheio de coisas que o senhor me forneceu (...). Agora estou justamente relendo as mesmas e passando para um caderno, classificadas e em ordem, (...) para serem aproveitadas em futuros livros.” Reescrevendo os textos do pai, Guimarães Rosa tem oportunidade de agregar suas lembranças à memória da família e da vila de Cordisburgo e arredores. Constrói, assim, — numa operação inversa àquela que descreve no conto “O espelho” — uma imagem compósita, pois delineia seu perfil, apropriando-se de traços dos antepassados e dos vizinhos e ainda inclui, no conjunto, características dos bichos domésticos, criados na infância. No entanto, quando se acompanha a saga cosmopolita e sertaneja dos “recados” transmitidos pela escrita rosiana, fica patente que “não se escreve com as próprias lembranças, a menos que delas se faça a origem e a destinação coletivas de um povo por vir ainda enterrado em suas traições e renegações.” ( Deleuze, 1997: 14 ) O povo, cujo devir se inscreve nessas “primeiras” e “terceiras estórias”, não forma uma nação nem reivindica uma verdade regional. Sua força política é, antes, da ordem fantástica das culturas diferentes, que se chocam e se entrelaçam. Em carta de 4/12/1963 a Edoardo Bizzarri, Guimarães Rosa diz escrever “como se estivesse traduzindo de um alto original, existente alhures”; em outra carta de 25/11/1963, descreve sua atividade narrativa como trabalho “mediúnico”. Se se descontar a artimanha mistificadora, que o escritor exercita, diante dos leitores, essas afirmativas explicitam o “agenciamento coletivo da enunciação” das estórias.

A escritura assinada por Guimarães Rosa, através da participação de seus vários co-autores, fez uso experimental da língua portuguesa, ao agregar aspectos morfo-sintáticos de outras línguas e de falares regionais, num desenho verbal híbrido, para propor, há cinqüenta anos, uma forma — inventiva e humorística — de convivência entre tempos disjuntivos e diferenças culturais. Seu paralelo contemporâneo é, por exemplo, o artesanato que resiste e se desenvolve, por essa América Latina afora, adaptando, com graça e malícia, a técnica e os modelos milenares à matéria industrializada e ao gosto do mercado internacional. Artesão das palavras, Rosa desenvolvia o relato, de modo a salvar do desaparecimento iminente as contribuições de Zito, Manuelzão, Florduardo e tantos outros contadores e cantadores anônimos. Superpondo fórmulas épicas, arcaicas e recentes, a técnicas da montagem industrial moderna, produzia, por processos de harmonização do heterogêneo, objetos verbais belos mas desconcertantes. Sua assinatura personalíssima, nesses objetos-estórias, não esconde mas põe em realce as marcas autorais de seus companheiros narradores, tenham eles sido identificados em livros canônicos, em cartas familiares ou nas conversas noturnas dos boiadeiros. Através do rastreamento das etapas de pesquisa, escolha, mistura e reelaboração das estórias — etapas guardadas nos registros do arquivo do escritor —, em confronto com a obra publicada, identifica-se, para além das tramas intertextuais ordinárias, a evidência de um trabalho composicional coletivo. Assumido como programa, tal trabalho confere à literatura um desempenho de ponta na reformulação das relações interculturais.

sexta-feira, 19 de abril de 2024

Entrevista: Paulo Henriques Britto, o notório saber da palavra

por Paula Reis Vianna, Miguel Suzarte e Mika Cordero



Paulo Henriques Britto nasceu no Rio de Janeiro, em 1951. É escritor premiado, professor e tradutor. Publicou sete livros de poesia, o mais recente deles sendo Fim de verão (2022), e dois livros de contos. Para o jornal Plástico Bolha, ele exerce um papel quase originário, já que a iniciativa de criação do jornal veio de suas oficinas de poesia na PUC-Rio. O encontro com Paulo é sempre uma alegria. 


1) Como a literatura entrou em sua vida e como você se relaciona com ela hoje? 

Desde os seis anos de idade sou um leitor compulsivo. A partir dos 22, quando comecei a traduzir, percebi que a literatura ia ser também o meu trabalho; essa consciência se reforçou ainda mais quando, depois de fazer mestrado em linguística, comecei a pesquisar e ensinar poesia e tradução de poesia. 


2) Dom, inspiração, trabalho, achado: nasce-se poeta ou torna-se poeta? 

Como em qualquer outro tipo de trabalho, a pessoa deve ter uma disposição inicial para a poesia — amor às palavras, algum talento — e muita dedicação: ler, ler muito, ler muitíssimo, e escrever constantemente. Sem trabalho, ninguém se torna poeta — nem músico, nem pintor, nem matemático, nem coisa nenhuma. 


3) Sendo um profissional da palavra, o seu olhar está sempre afiado, ou você̂ consegue ser um “leitor amador”? Há um botão de liga/desliga? 

Muito difícil desligar esse botão. Claro que, quando estou mergulhado num romance, há momentos em que sou apenas um leitor, mas a qualquer instante posso me deparar com uma passagem que desperte uma série de considerações — para usar a sua palavra — profissionais. O mesmo se dá com um poema. Quando leio versos que me empolgam, há um momento de pura entrega, mas logo em seguida sinto a necessidade de entender por que motivo o poema me afetou tanto; e aí faço uma análise formal e semântica, e invariavelmente descubro onde reside a causa do impacto do texto. 


4) Em todo verdadeiro artista, a arte e a vida são uma coisa só. O que você acha dessa afirmação? Há separação? 

Sim e não. Sim, porque a qualquer momento você pode ter um impulso de escrever, uma ideia, uma motivação concreta, com origem por vezes numa atividade cotidiana; qualquer ocorrência na sua vida pode vir e ser utilizada na sua produção artística. Mas ninguém passa vinte e quatro horas vivendo em estado de imersão artística; há momentos que são vividos apenas como tais, e não como material para elaboração artística. Ninguém? Bem, talvez haja alguns artistas assim, principalmente entre os músicos; mas imagino que sejam componentes de uma minoria. 


5) Quais os livros fundamentais para a sua formação? O que está lendo agora? O que indica como leitura para o momento atual?

São perguntas que eu levaria dias para responder! Vou ter que ser muito sucinto. Na área de poesia, os poetas que mais me marcaram foram, num primeiro momento, alguns poetas de língua inglesa que li por volta dos onze, doze anos, quando morava nos Estados Unidos: Shakespeare, Whitman, Poe, Dickinson. Quando voltei para o Brasil, descobri Pessoa, e pouco depois Bandeira e Drummond; em torno dos vinte e poucos anos, fui muito marcado pela leitura de Wallace Stevens e Cabral, e um pouco depois por Kaváfis. Esses são apenas alguns dos mais importantes para a minha formação. No momento, estou lendo o livro mais recente da crítica de poesia norte-americana Marjorie Perloff, Infrathin: an experiment in micropoetics. Quanto a leituras indicadas para o momento atual, isso vai depender do interesse de cada um. De novo, para ficar na área de poesia, vou citar apenas dois ou três nomes de poetas brasileiros contemporâneos que venho acompanhando de perto: Edimilson de Almeida Pereira, André Capilé e Claudia Roquette-Pinto. 


6) A literatura é, por vezes, considerada como escape da realidade e, outras, como forma de abrir nossos olhos para suas sutilezas. Como lida com essas percepções em sua própria escrita? 

A meu ver, a boa literatura nos obriga a enfrentar de modo mais direto a realidade, com tudo o que nela há de complexo e mesmo duro. A literatura nos faz tomar consciência da condição mortal, entre muitas outras coisas. Na minha escrita, estou sempre tentando entender em que lugar estou, tentando dar sentido às minhas vivências, mesmo quando escrevo coisas que estão longe de ser autobiográficas. 


7) Todos já fizeram poemas algum dia, em geral na juventude. Você escreve poesia já há muitas décadas. O que te faz permanecer poeta? 

A leitura e a escrita constantes, e a vontade — por vezes necessidade — de escrever. 


8) “Traduttore, traditore". A tradução é, necessariamente, fadada à imprecisão? 

É possível pôr ao mundo uma tradução isenta de marcas pessoais e infidelidades à obra original? De novo, uma pergunta muito ampla, que não vou ter espaço para desenvolver aqui. De modo geral, o que posso dizer é que nenhuma tradução é exata, mas isso não é um problema específico da tradução, e sim de toda e qualquer intervenção humana. Não há traduções perfeitas pelo mesmo motivo que não há tratamentos médicos que garantam saúde perfeita e imortalidade, nem engenharia do trânsito perfeita que acabe com os engarrafamentos em caráter definitivo. Do mesmo modo, toda tradução guarda marcas pessoais do tradutor, mas isso não é uma característica exclusiva da tradução: é impossível realizar praticamente qualquer atividade sem algum viés, alguma marca pessoal. As limitações da tradução são reais, tal como são as de qualquer outro empreendimento humano. 


9) Como está sendo a experiência de ser avô? Isso influencia de algum modo sua produção? 

Creio que a única influência direta é que tem me levado a escrever narrativas que eu possa ler para meus netos. 


Esta entrevista foi realizada como parte das atividades de práticas extensionistas realizadas junto aos alunos da graduação em Letras da PUC-Rio, sob a supervisão da professora Helena Martins e com a coordenação de Suzana Macedo e Lucas Viriato. 


quinta-feira, 18 de abril de 2024

Um poema de Naaman


Faça sol.
Se fizer chuva,
Mergulhe.


Naaman

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Horizonte de eventos


No vértice do fulgor
o ouro que flameja
e não parece invocar
com este lance nada,
nem uma careta rotunda
nem um sobressalto.


Néstor E. Rodríguez


terça-feira, 16 de abril de 2024

ILUSÃO, um tango de Edgardo Zuain

um dia eu procurei o que não tinha existido
histórias sem avesso que inventa a ilusão,
os tempos que vivemos, as máscaras do mundo
e as saudades antigas de um louco coração

você saberá do que lhe estou falando
eu semeei com palavras as várzeas da paixão
mas o vento que avança, arrasta o que encontra
e a vida que é mudança se deixa levar

refrão
solidão dias tristes que acontecem na minha alma
solidão rio longínquo que não deixa de passar
minha dor um navio que se afunda na distância
meu amor uma praia que se escapa do seu mar

o destino quis cruzar os nossos caminhos
animou minha esperança como o cheiro de uma flor
procurei sua beleza em todos os sentidos
mas fiquei como um pássaro pairando no ar

um dia eu pedi o que não tinha existido
o que pede qualquer homem com vontade de querer
uma casa-companheira para me encher de vida
e uma mulher formosa para se deixar querer

refrão
solidão dias tristes que acontecem na minha alma
solidão rio longo que não deixa de passar
minha dor um navio que se afunda na distância
meu amor uma praia que se escapa do seu mar


Edgardo Zuain

Se você gostou da letra do tango, Ouça aqui a canção.

segunda-feira, 15 de abril de 2024

cantiga ilegal


uni, duni, tê
ela vai tirar o bebê
e nem vai precisar
morrer.

Mr. Oculus

domingo, 14 de abril de 2024

De crise em crise

A crise é estética 
E a estética da crise
É moralista

A crise é poética 
E o poeta da crise
É um fascista

De crise em crise
De passo em passo
De grão em grão 
Mais um deslize
Sigo em cansaço 
Na contra mão


Felipe Fernandes

sábado, 13 de abril de 2024

Um poema de Clara de Góes


Não falo mais nos jardins
dos Finzi-Contini, não penso
na Gestapo, nas Marchas  para a Morte,
no terror vermelho, nos massacres da Bósnia
ou de Ruanda. Os campos de refugiados
palestinos são uma questão de foro íntimo.
Por falar nisso, fodam-se os arquivos da ditadura. 
Cansei de gente. Declino da espécie.


Clara Góes

sexta-feira, 12 de abril de 2024

Entrevista: Ana Chiara, entre leituras e memórias

por Lucas Viriato

 


Ana Chiara é professora na Faculdade de Letras da UERJ e autora de obras acadêmicas aclamadas sobre literatura brasileira contemporânea. Seus livros incluem Pedro Nava: um homem no limiar (2001), Ensaios de possessão: Irrespiráveis (2006), Machado para jovens (2008) e Corpos diversos (2015), entre outros. No Jornal Plástico Bolha, ela já foi entrevistada na edição número 8, teve uma coluna fixa e publicou diversos textos avulsos, ou seja, é uma parceira e colaboradora de longa data. Passados tantos anos, já era hora de atualizar o nosso bate-papo com ela, e o resultado foi uma conversa repleta de poesia, lembranças e afeto. 


1) Como a Literatura entrou em sua vida e como você se relaciona com ela hoje?

Acho que entrou como refúgio. Conhece o poema “Infância”, de Carlos Drummond? “eu menino entre mangueiras/ lia a história de Robinson Crusoé”? Eu posso dizer: “eu, menina entre dois irmãos homens, lia”. Era gordinha e não brilhava em nenhum esporte, mas era muito estudiosa e estudar era fácil. Por causa disso, para me livrar da ansiedade de conviver com os meninos atléticos e levados, ia para a ilha da leitura. Eu me mostrava para meus pais. Queria ganhar o amor deles.

2) Dom, inspiração, trabalho, achado: nasce-se poeta ou torna-se poeta? 

Alguns nascem definitivamente poetas, são os que facilmente acessam as zonas da sensibilidade. Conheço pessoas que têm um pensamento e uma fala totalmente poéticos, mas nem se sabem poetas. Outros têm veleidades de serem poetas, estes têm de trabalhar mais: conhecer as máquinas dos poemas dos outros e se exercitarem. Outros ainda tropeçam nos achados. Ferreira Gullar contava que vinha distraído, pela Praça Mauá, num feriado. A cidade vazia. De repente sente um vrum ventando no seu rosto. Foi um pombo. Foi um achado. A partir de então ele explicava esse “espanto” como a poesia.

3) Sendo um profissional da palavra, o seu olhar está sempre afiado, ou você consegue ser uma “leitora amadora”? Há um botão de liga/desliga?

Consigo com perfeição isso como espectadora, sou totalmente aberta às impressões do coração quando vou ao teatro, assisto a um filme. Como leitora sou mais viciada, como se usasse um lápis corretor nos olhos. A verdade é que hoje em dia sinto dificuldades em ler: ou por cansaço físico, ou por cansaço da vista, rinite, ou por dificuldade de memória. 

4) Em todo verdadeiro artista, a arte e a vida são uma coisa só. O que você acha dessa afirmação? Há separação?

Acho que não existe um verdadeiro artista, porque isso depende do que a sua época julga ser um artista. Implico com esse mito vanguardista nietzschiano de fazer de sua vida uma obra de arte. É um mito burguês e machista. As mulheres têm a capacidade de fazer mil coisas práticas enquanto estão fabulando. Só os homens precisam de “ambiente”, “sossego” e, muitas vezes, drogas, para serem artistas. Artistas de teatro ou de TV por vezes embarcam nessa ilusão, tornando a vida dos outros um inferno. João Antonio, para viver seu “corpo a corpo com a vida”, precisou de uma mulher que ajeitasse a vida dele. O bom da arte é poder entrar e sair de mundos alternativos ao seu.

5) Quais os livros fundamentais para a sua formação? O que está lendo agora? O que indica como leitura para o momento atual?

Tudo que li me formou para o bem e para o mal, digamos assim. Estou lendo agora, e recomendo, Cobra Norato, de Raul Bopp, e Primeiras Estórias, de Guimarães Rosa, fazendo leituras extensivas. Não gosto de ler o que todo mundo está lendo. E detesto quem joga uma estante de leituras “atuais” numa conversa. Porque acredito que a gente demora muito para assimilar o que lê.

6) Ultimamente temos nos debruçado sobre o poema “Cobra Norato”, de Raul Bopp. O que mais te encantou no poema?

Este poema é genial. Porque mistura muitas camadas de linguagem. É como se Bopp tivesse recuperado a inocência iluminada que as crianças têm para ver "com olhos livres", sem imitar o tatibitate de muitos livros infantis. A viagem é uma viagem assustadora e ao mesmo tempo cheia de ternura, movida pelo desejo amoroso. Quero copiar passagens para meus netos e ilustrar com colagens.

7) O que te leva a escrever poesia?

Não diria que escrevo poesia. O que escrevo na maioria das vezes é uma notação existencial.

8) Você dá aulas desde 1977. Uma vida na sala de aula, da qual você está prestes a se aposentar. Com todas as dores e delícias, valeu a pena?

Valeu uma vida. 

9) Poderia contar um pouco sobre sua infância em Minas?

Eu vim de Belo-Horizonte, onde nasci, com três anos. Não me lembro de nada de Belô...Minhas memórias vêm de minhas idas à Fazenda da família do meu pai e do convívio com os mineiros do interior. São lembranças ótimas e aterradoras. Tinha os banhos de rio no Rio Preto, no Ribeirão. Tinha os primos, o primeiro alumbramento. Quando chovia no verão, os relâmpagos e trovões eram tremendos. A gente acendia os ramos do Domingo de Ramos e esperávamos passar. Convivi com os empregados que tinham causos que o Rosa podia ter roubado. Minha mãe comandava tudo. Ela cozinhava em fogão de lenha e em panelas de ferro. Minha mãe se dava muito bem com os animais. Tinha uma mula que era da pomba gira Rosa de Fogo. Essa mula subia os degraus da cozinha. Só obedecia à minha mãe. Tudo fantástico.  

10) Como está sendo a experiência de ser avó?

A experiência de ser avó é poder ver a vida acontecendo de uma forma absolutamente encantadora. A menina e o menino recuperados em mim, para mim. 

11) Quais as qualidades de um bom leitor?

Para cada tipo de texto, um leitor esperto, sábio ou amoroso. Muitas vezes leio com a ironia sentada no meu colo. 



Esta entrevista foi realizada como parte das atividades de práticas extensionistas realizadas junto aos alunos da graduação em Letras da PUC-Rio, sob a supervisão da professora Helena Martins e com a coordenação de Suzana Macedo e Lucas Viriato. 




quinta-feira, 11 de abril de 2024

Dizer: fazer — poema de Octavio Paz, traduzido por Eduardo Jardim


1.

Entre o que vejo e digo,
entre o que digo e calo,
entre o que calo e sonho,
entre o que sonho e esqueço,
a poesia.
                  Desliza
entre o sim e o não:
                  diz
o que calo,
                 cala
o que digo,
                sonha
o que esqueço.
                Não é um dizer:
é um fazer
                É um fazer
que é um dizer.
                A poesia
se diz e se ouve:
                é real.
E logo que digo
                é real
se dissipa.
                Assim é mais real?


2.

Ideia palpável,
             palavra
impalpável:
               a poesia
vai e vem
               entre o que é
e o que não é.
               Tece reflexos
e os destece.
               A poesia
semeia olhos na página,
semeia palavras nos olhos.
Os olhos falam,
               as palavras olham,
os olhares pensam.
               Ouvir
os pensamentos,
               ver
o que dizemos
               tocar
o corpo da ideia.
              Os olhos
se fecham,
              as palavras se abrem.


Octavio Paz, traduzido por Eduardo Jardim

quarta-feira, 10 de abril de 2024

A rosa que exala o dia


a rosa
que exala o dia
ignora

a hérnia
a cárie
a carne fria.

a rosa
que exala o dia
é uma aliança
entre
o mormaço
e a alforria.

e escoa
e urina
sobre o passado

e mira
e relincha
em cima
dos telhados.

feito dama-da-noite
seu aroma
invade tudo.


Rogério Batalha

terça-feira, 9 de abril de 2024

Derradeiros ou exordiais


Ele gostava de colecionar marcadores de página. Procurava os mais jeitosos. Os que anunciassem bons livros, desde que não fossem meras propagandas. Os que mostrassem pinturas ou gravuras admiráveis. Aqueles com fotos de bandas dos anos 70, 80 ou 90. Não fazem mais bandas como antigamente.
Gostava do tradicional, classicão. Retangular, não muito estreito nem largo demais, desde que ficasse levemente maior que os 23 cm de altura padrão dos livros.
Essa mania, costume, simpatia ou cacoete surgiu quando percebeu que não suportava o fato de não saber quando (e principalmente como) voltaria àquela leitura. Não exatamente a ler o livro em si, mas à leitura. Aquele momento em que sua cabeça se preparou pelo que veio antes e se instigou com o que viria pela frente. Quando sua mente fica compenetrada, ensimesmada, para chegar naquele ponto. E o marcador o ajudava a atingir esse momento. De maneira aparentemente irrelevante, o remetia àquela leitura que tinha deixado para trás. E era por isso que não poderia ser qualquer um.
E obviamente o seu capricho não se resumia ao marcador. Ele não deixava que o estampido seco da capa batendo nas páginas se fizesse ouvir antes de acabar o capítulo. Se estivesse no clímax da história, só fechava quando o frenesi causado pelo mesmo acabasse. Se estava para acabar, não economizava, lia até o final, sem pressa de chegar ao seu compromisso. Afinal, também estava em um afazer importante.
E nessa de não parar até que estivesse convencido que poderia deixar seu companheiro de celulose e papelão descansar em sua mochila cinza, zanzava pela plataforma do metrô da Central. Sentava nos bancos, encostava nas pilastras, apoiava no parapeito empoeirado. Só não podia fechar sem mais nem menos.
Se pudesse, leria todos os livros em uma única sentada em seu sofá ou na poltrona de alguma livraria, aquecida pelo estranho que a ocupou antes da sua chegada.
E, por isso, precisava do marcador, um bom marcador. Sabia que era uma ilusão querer voltar ao mesmo momento, mas ajudava. Era um engodo que tinha afinidade.
A realidade é que sabemos que nunca vamos voltar àquele exato momento. Não dá pra sentir da mesma forma. Reagir da mesma forma. Pensar da mesma forma. Ler da mesma forma. Livros, pessoas, instantes. É impossível fazê-lo depois de passados outros alguéns, tempos e vivências.
E ele preferia pensar que todos os instantes são os derradeiros com algo ou alguém. Mas sabia que, raciocinando um pouco, esses mesmos últimos momentos poderiam ser, na verdade, os exordiais, primeiros, iniciais.
Às vezes pensamos que esgotamos tudo que poderíamos viver com alguém ou em certo contexto. É bom viver intensamente como se aqueles momentos fossem os últimos, mas é incrível pensar que podem, na verdade, ser o início de uma jornada com fim indefinido.
E tudo se torna uma obra de arte. No final das contas, podemos revisitar certos momentos, de longe, ao lembrar com carinho e vibrar pela pessoa, ou de perto, ao conferir como a pessoa está, perguntar por ela a algum conhecido. E saber ser feliz com isso. Aceitar que outros amigos, companheiros, namorados, irmãos virão para completar essa obra que você ajudou a construir e que ajudou a te construir também.
Como um livro, que se torna obra de arte pelos seus leitores, estes, na contramão, também viram e propagam arte ao se deleitarem com seus ditos.
E pensando nisso tudo, lembrou de algo que lhe contaram ou que leu em algum lugar.
Um relato sofrido, mas carinhoso, que representava o que sentia ao lembrar de momentos que eram certamente (será?) derradeiros.
No início da década de 70, o mineiro Juscelino Kubitschek, 21° presidente do Brasil, à época impedido pelo governo militar de ir a Brasília, foi anonimamente à "sua" cidade como um artista que vai à exposição de suas obras travestido de mero mortal.
E chorou.
Ao jornal que noticiou o acontecimento, contou:
"Não que eu quisesse ser reconhecido, ao contrário, fico muito melhor assim. Mas não deixei de me sentir como em uma cidade-fantasma, ou melhor, como um fantasma numa cidade real. Gostei de ver como Brasília está bonita, foi uma surpresa. Tenho enfrentado dissabores e sofrimentos. Mas ao deixar a capital em que não pisava há tanto tempo, cercou meu sentimento de paz e tranquilidade. Há em todos nós o sentimento bíblico que vez por outra emerge à flor da pele: eu me senti como um semeador que, do alto de um penhasco, observa a seara indestrutível. Muita coisa se fez depois de mim, meus sucessores deram continuidade à obra iniciada."


Eduardo Moraes

segunda-feira, 8 de abril de 2024

Big Bang


El azul tenaz
es mi recuerdo más urgente,
la marca de tu supremacía
en el segundo
en que se dispararon
los astros.

Néstor E. Rodriguez

domingo, 7 de abril de 2024

Lobotomizam


o lobo
limbo
lindo
que
embala
o rabo
bobo
do próprio
estorvo
camufla
espantalhos


Rodrigo de Souza Leão

sábado, 6 de abril de 2024

Coda, um poema de Paulo Heriques Britto

 
Toda vida é provisória,
todo poema é fragmento.
Cada dia, cada hora,
cada verso é só um momento

de alguma totalidade
que você sequer concebe.
Viva e escreva e não se abale.
Você não é o que você escreve.


Paulo Henriques Britto

sexta-feira, 5 de abril de 2024

sereia


minha musa
troiana-lusa
num disse me disse
falam que, tão linda,
jogou o pomo
para Afrodite

minha musa
é atenta e sapiente…
daí, há quem pense
que, sem pena,
jogou o pomo
para Atena

minha musa
é sincera, é austera
(o amor como ele era)
vai, fala logo, eu sei:
jogou o pomo
para Hera


Lucas Viriato


quinta-feira, 4 de abril de 2024

Gambiarras


Hoje como sempre
restam gambiarras.
a vida crua e cítrica
e a ferrugem das horas
sob as inquietações dos dias.
a vida hoje e sempre:
gambiarras.
o trem de ferro
os descampados
as folhas secas do quintal
e o papel de embrulho
que envolve as manhãs
do povo indo para o trabalho.


Rogério Batalha

quarta-feira, 3 de abril de 2024

Percebendo Marguerite


Percebendo agora, essas paredes brancas foram um engano

Você me olha da porta com desinteresse e diz que discorda

Marguerite Duras me olha da cama e diz que concorda

Marguerite é qualquer coisa menos dura:

Diz, com ternura, “foi um engano”


Satisfeita, puxo o livro, sopro a poeira

Leio alto, com postura, curiosa e empolgada

Vejo luzes fraquejando, roupas adornadas e um lenço pendendo do                                                                                               [teto

Mapas enquadrados, cidades inflamadas e corpos recém descobertos

Na parede está a bomba (como um cogumelo)

Caindo sobre o quarto (atmosfera de encanto mesmo ao som dos seus                                                                                         [protestos)


Eu sei que você está odiando

Porque sua cara evidencia o quanto tudo é ordinário

E revela, sem sutilezas, a nudez do meu palco


Ainda tenho Hiroshima às minhas mãos

Tenho Marguerite me encarando e você claramente enfadado

“Hiroshima é super trágico”


Dou tudo de mim (estou encenando)

Dou tudo de mim e ainda assim

A plateia pode estragar o espetáculo Paula Reis Vianna

terça-feira, 2 de abril de 2024

o verme, de Gabriel Silveira


ando na rua com passos em ritmo
de fuga
atentos ao primeiro sinal
ao primeiro estrondo de
algo que já é
banal.
procuro por portas abertas em cada esquina,
por frestas para ir quando o bicho pegar.
ele tem duas patas e um olhar odiento
é verme que rasteja na caveira
com rodas enquanto a fumaça se espalha pelo ar.
deixa no solo pegadas rubras e de preto zomba
do luto
de feridas que não cabem em números
do irmão do outro lado do muro.

crânio acéfalo de faca em riste
que rasga um país
ao meio.


Gabriel Silveira

segunda-feira, 1 de abril de 2024

PARA UM MONUMENTO AO ANTIDEPRESSIVO


Um pequeno sol de bolso
que não propriamente ilumina
mas durante seu percurso
dissipa a espessa neblina

que impede o outro sol, importátil,
de revelar sem distoção
dura, doída, suportável,
a humana condição.

Paulo Henriques Britto

domingo, 31 de março de 2024

Raquíticos, de Rogério Batalha


raquíticos sob zinco
descem o morro para trabalhar
às quatro e quarenta da manhã.
marcham tristes para as fábricas
em busca de vale e cesta básica.
como curso de córrego
que jamais encontrará o mar.
córregos que são como bocas
que só mastigam carniças e espinhos.
como pombos esmagados
por automóveis banhados de sol.


Rogério Batalha

sábado, 30 de março de 2024

Um poema de Larissa Lins


Maud Gonne foi embora para Bizâncio
E embora rumo a lá eu me navegue
Me amedrontam me correm pelo sangue
Suas vozes que me ocorrem em prenúncio
De um outro tempo fora da natureza
Em que o ouro dos joalheiros gregos
Que fabricam passados que congrego
Em relógios que cintilam em leveza
Dentro do meu coração desejo
E animal agonizante daqui vejo
Aquilo lá não é terra para velhos
Mas rumo a cidade de Bizâncio sagrada
Percorro mares com minha alma estilhaçada
Porque aqui também não é terra para velhos


Larissa Lins

sexta-feira, 29 de março de 2024

Feridas, de Rodrigo de Souza Leão


cutuco ferida na pele 
na mente cutucam por mim

remédios de toda a espécie
de bichos selvagens

a avestruz que me navega
nunca pôs a cabeça para fora

mas foi decapitada
num terremoto sem piportil


Rodrigo de Souza Leão

quinta-feira, 28 de março de 2024

Ideología, de Jade Prata


Hay polvo en los ojos
del pueblo en la calle.
Polvo de plomo,
de sangre,
de lágrimas de madre,
de pus de herida,
de estupro
de la tierra,
de la muerte del padre.

Hay polvo en los ojos
del pueblo en la calle.


Jade Prata

quarta-feira, 27 de março de 2024

A rosa mareada


seis da tarde.
todos os homens estão
voltando para seus lares
e eu não tenho aonde ir
porque estou em busca
da rosa mareada
a flor que só nasce
nos penhascos da noite
aquela que se abre
para as tempestades
a pétala que perdeu o prumo.

Rogério Batalha

terça-feira, 26 de março de 2024

Soneto da Bradamante


escurece o clarão do dia
estribos alazão embocadura
levo ao estábulo para a montaria
e ao fim da tarde de danação e açoite
quando às vezes o castigo e outras vezes não
resta certo então o que se desvela à noite
sob as velas do quarto sou eu a Tua guia
monto arreios e sela e entôo o meu canto
a voz que o maltrata e tão doce te chama
a luz que rutila o teu olhar que me clama
por piedade patife enamorado
de medo te contorces na cama domado
e de amor e alegria ao prazer cintilante
pois que és tu um cavalo e eu a Bradamante


Larissa Lins

segunda-feira, 25 de março de 2024

Um poema de Isa Mara


Existe um homem
No fundo do mar
Que sai da água pra pegar
Mulheres e leva elas para o fundo
Do mar para afogar e transformar
Em sereia
Existe também Iemanjá.

Isa Mara

domingo, 24 de março de 2024

Herança

 
Caminho
com os sapatos de meu filho,
a passos largos
percorro as ruas
por onde ambos transitamos
sem pensar nos itinerários da pressa.
Os sapatos deixados pelo menino
são sua maneira de começar
a me criar como a criança
que ele um dia foi
e que agora se dilui
na severidade
de sua nova pele de homem.


Néstor E. Rodríguez

sábado, 23 de março de 2024

PSICODÉLICA


Posso viajar o ano inteiro
Sem jamais voltar ao mesmo endereço
E mais
Dou a volta ao mundo em um segundo
Volto atrás e encontro o velho futuro

Sou assim
E quem me vê assim
Diadorim
Ontem mesmo a figura estranhou

Vou sair
Alguém vem junto?
Eu
Vivo assim
Mudo com o tempo
Tenho a sorte a meu favor

Não sou pessimista
Meu Jaguar veloz na pista
Ligado em Rock and Roll
Dizem que sou rica
Mas não tenho ainda um disco voador

Sou assim
E quem me vê assim
Tão free again
Ontem mesmo a figura se mandou
Não dormi
Agora já... ... ...
...esqueci.
São Dumont!
Já de malas prontas e o check in…

Dizem que sou rica
Pego a dica e vou bancar meu carnaval
Sou pós-modernista
Faço antropofagia sideral

No terraço em minha cobertura
Posso dar o pouso à nave futura
Um ET sentado em meu carrão
Banco a carona e a tradução

Meu pão

Vem me contar a sua história
Bagunçar minha memória e meu cartão
Vem me dizer se onde mora
Tem registro de humanóide imigração
Vamos dar um giro na galáxia
Até que a morte não desligue o coração


Numa Ciro



Escute aqui a canção musicada com Lan Lanh no maravilhoso clipe de André Vallias.


sexta-feira, 22 de março de 2024

insone, um poema de Paula Reis Vianna

quando eu penso muito

no que as pessoas pensam

eu não durmo

e nessa insônia eu me pego

completamente pirada

questionando deus se ele dança

questionando

se meu porteiro,

por me chamar carinhosamente

de paulinha, por me conhecer

desde menina

imagina que eu esteja usando

todas as roupas do

guarda roupa do

meu pai, ou

se por acaso sou eu

que faço

esses barulhos

à noite Paula Reis Vianna

quinta-feira, 21 de março de 2024

Falando com si mesmo


sopapos de anjo
só papos de anjo
só papo com anjo


Rodrigo de Souza Leão


Rodrigo de Souza Leão foi um escritor e articulador cultural do início dos anos 2000. Mesmo sendo anterior ao surgimento do Jornal Plástico Bolha, e não estando mais entre nós, achamos que seus textos são a cara deste blog. RSL + PB = uma fórmula de sucesso. A seleção publicada aqui está no livro LoWcura do selo Demônio Negro.

quarta-feira, 20 de março de 2024

Os ruídos


os ruídos que saem de ti
não é o vizinho
que cansado sobe a escada.
os ruídos que saem de ti
não é a criança que chora.
não é sequer a britadeira
do operário mudo
que sob o sol trabalha.
os ruídos que saem de ti
são os ecos de uma vida cansada.


Rogério Batalha

terça-feira, 19 de março de 2024

Um poema de Larissa Lins


há uma mulher e ela me espreita
ela me olha através do espelho
dia após dia ela vem e ela vai embora
dia após dia ela afoga uma menininha em mim
dia após dia — like a terrible fish

segunda-feira, 18 de março de 2024

Um poema de Clara de Góes


Quando o mar sossegar
e as ondas se cobrirem de silêncio,
restará essa tristeza de pedra,
loucura submersa
de ser.

Clara de Góes

domingo, 17 de março de 2024

A rosa do tempo


a rosa do tempo
(a palha sob os frutos)
despetalou quase tudo.

como uma flor que urina
suas próprias pétalas no final da tarde
em busca das cercanias do sonhado.

assim como um elemento casual
é fruto e sêmen para o poema.


Rogério Batalha

sábado, 16 de março de 2024

Um poema de Mariana Junqueira Pedras


Não sou poeta nem escritora
Mas já que a vovó quer presente
Venho aqui como impostora

Essa história começou a muito tempo atrás
Como se diz por aí “once upon a time”
Um vovô que ainda não era avô, mas muito audaz
Enamorou-se por uma linda jovem hoje vovó, “just in time”

Papo vai, papo vem... chegou o grande dia
Estavam todos lá ouvindo a melodia
(tocar marcha nupcial)

E numa tarde ensolarada
Na maternidade lotada
A filhinha muito esperada
Chegou para animar a primarada

A vida foi vivendo
E do Rio saíram correndo
Numa terra muito distante
Mais uma vez a vovó se fez gestante

Em terras pernambucanas
Nasceu uma menininha arretada que só
Sorridente, alegre e curiosa
Logo se tornou a gloriosa

Mas o vovô não podia ser o único a reinar
E no Figueiredo em aceleramento, veio a notícia para comemorar
Esse Natal não será no Rio! Ficaremos para o nascimento do rebento que vai chegar

O mundo gira
E uma grande oportunidade apareceu!
Morar mais perto dos bivós...
BH, aqui vamos nós!

Mas cinco ainda era pouco
Vovô e vovó queriam ser avô e avó
Quanto mais netinhos, melhor!

A primeira a nascer foi a primeira a casar
Só que demorou para se concretizar!
Mas a primeira netinha nasceu
Conforme a filhinha prometeu!

Casamento aqui, casamento acolá
Mais dois filhos a cantarolá
A música que não quer calar
(tocar a marcha nupcial)

O tempo foi passando
E nada de netos chegando.
Até que a notícia apareceu.
O segundo netinho nasceu.

E aí? Como vamos ficar?
Só dois netos para alegrar?
Que nada!!! Mais uma netinha chegando
Em terras fluminenses iluminando

A família ainda não estava completa
Vovô e Vovó precisavam de mais uma neta
E a loirinha de olhos claros nasceu!

Como aconteceu lá trás,
O netinho não podia ser o único a reinar
E fechando com chave de ouro
Mais um netinho chegou para alegrar

Agora sim, podemos dizer com certeza
Somos uma família, que fortaleza

E nesse Natal sem presente
Somos o presente e estamos presente!
Que é muito mais legal


Mariana Junqueira Pedras

sexta-feira, 15 de março de 2024

Saideira, de Guilherme Ottoni


Para o amigo Thiago

O último gole acerta a dual vontade
De quem é livre por excesso, e o atira,
Com o achincalhe caro à realidade,
Ao chão de um bar que um dia lhe servira!
Dou esse gole ao fel da honestidade
Para inebriar-me da última mentira,
Mas se por vezes o ímpeto me invade
Deixo queimar a tentação em ira!
Bebo-o. Traio meu próprio livre-arbítrio.
E depois, boiando ao acaso em meu desejo,
Mofo nas lágrimas de um olho vítreo!
Sóbrio, tal apatia não se doma,
Porquanto a Liberdade, como a vejo,
Não se busca ou se pede, só se toma!


Guilherme Ottoni


quinta-feira, 14 de março de 2024

Urgências


Urge a paciência a passos lentos
Urge a guerra na Ucrânia
Urge retroalimentar o crânio
Urge libertar o pássaro
Urge assaltar o avaro
Urgentes indigentes
Urge indiferente, desta ou daquela gente
Passa ferro na minha mente
Fulgor dos unguentos
O que urge e desagua feito onda do mar ou lágrima
Urge a saudade no peito que rebenta
Esta troça não aguento
No teu útero o meu rebento
Filho da Pátria nossa que amamento
E se conclamo a dor derradeira cavalgadura
É que esparramado feito espasmo espirro o gozo na boca tua
Urge para o bem ou para o mal o ânimo
Urge não morrer nem matar o meu irmão eslâmico
Urge em nós o sexo tântrico
Urge a lâmpada
Urge o Vagalume
Urge meu peito roçando o peito teu
Urge o urso hibernando
Urge o último relâmpago
Urge minha sina
O sinal de trânsito
A construção
Urge a infância no futuro
Urge que derrubemos das prisões os muros


Antonio Marcos Abreu de Arruda

quarta-feira, 13 de março de 2024

A noite, de Rogério Batalha


sob o esporão da noite
tu ouves a voz
da tromba d'água.
porque há em ti a noite
(em plena luz do dia).

mas se o sol ainda brilha
por que não persiste
e invade esse breu?

por que
(como um corpo
exumado)
tu não expeles
essa treva?


Rogério Batalha

terça-feira, 12 de março de 2024

para um tema recorrente em bruegel


a propósito da dor | não estavam erradas as pinturas antigas | quase nada mesmo muda | o 
sol se põe e ninguém liga | talvez com algum tempo instaure-se na memória um pouco de bolor | como geleiras que se fundem vagarosamente ao mar | talvez permaneça ainda a experiência do medo | numa confusão mental aguda | mas quase nada mesmo muda | apesar da cabeça embolorada de águas gélidas derretidas | permanece o mesmo o mar | exceto por um minúsculo ícaro alado | a morte triunfante alegre alaúde um ícaro afogado | as minhas pernas para o ar


Larissa Lins

segunda-feira, 11 de março de 2024

Um poema de Leonardo Gandolfi


Cada um, Totó,
tem o Kansas que merece
embora eu ache que
nem estejamos nele mais.

Leonardo Gandolfi

domingo, 10 de março de 2024

Oswald antropófago


como pode
tantas mulheres
todas tão fantásticas
caírem no conto
de um homem que
escreveu de tudo
menos um conto?!


Lucas Viriato 

sábado, 9 de março de 2024

CADERNOS DE GLAUBER E GUIMARÃES ROSA: APROXIMAÇÕES, de Marília Rothier


O conjunto das obras literárias e visuais — legitimadas e circulantes entre o público consumidor — integra, certamente, parte importante do patrimônio de uma cultura. No entanto, esses bens arrolados nos levantamentos imagético-bibliográficos correspondem à parte visível de um acervo muito mais amplo e complexo (responsável, em maior ou menor escala, pela própria existência das obras), acervo apenas sugerido nas fronteiras incertas dos arquivos privados. O fundamento da afirmativa é óbvio: todo produto artístico, ao constituir-se, movimenta um enorme circuito de referências, tensamente articuladas, para consolidar, como novidade digna de divulgação, apenas um número reduzido de signos. Por sua vez, esses signos, constelados em objeto-arte, retiram a intensidade de seu brilho das marcas pouco nítidas, inscritas neles, durante o processo de construção.

Visto da perspectiva descrita, o patrimônio ganha um excedente de valor e nos desafia com sua incalculada riqueza espectral. Encontramo-nos como que diante daquele personagem rosiano de “O recado do morro”, o Coletor, que, fazia crescer suas posses em fazendas e gado, à medida que ia registrando as cifras e somando-as, alucinadamente, nos muros da igreja do arraial. Quando a visada crítica sobre uma obra atravessa-a para ir rastrear as etapas de sua construção, nos proto-registros de seus planos, rascunhos e versões abandonadas, a tarefa empreendida assemelha-se aos cálculos do Coletor. Não lida com quantidades materiais, tesouros palpáveis, mas com um excesso significante fluido, que só reverte em riqueza (nos termos de Oswald de Andrade), no momento em que se deixa prender nas redes do inventário. Num momento, como este, de reunião de certo modo festiva, como foi o caso da missa antecedendo à Congada, cenário das contas desvairadas do Coletor, propõe-se um exame dessa experiência desconcertante mas rentável de compulsar fragmentos do trabalho artístico em meio à documentação de acervos pessoais. É um modo de fazer inventário conjurando fantasmas. Operação inútil, do ponto de vista pragmático, embora altamente lucrativa se o objetivo é duvidar da solidez dos haveres resguardados e buscar outros valores possíveis como lastro da arte-pensamento.

As amostras escolhidas para o exame proposto, no arquivo do escritor Guimarães Rosa, são três cadernos, guardados no Arquivo Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa, em cópia xerox, sem que haja indicação do paradeiro dos originais. Tais cadernos, indicados pelos números 2301, 2303 e 2304, correspondem, sem dúvida, a anotações de estudo, pois alternam citações com registros de palavras e frases, cunhadas pelo autor-leitor, certamente ao longo de pesquisas sobre temas de seu interesse. Pela quantidade e extensão dos trechos citados e pela insistência no experimento com a cunhagem de expressões desautomatizadoras do corriqueiro da linguagem, entende-se que o estudioso operava um levantamento consistente de material informativo e lingüístico que pudesse fundamentar seu trabalho fabulador. Como se, diante do patrimônio herdado, o escritor precisasse reservar uma cota particular para seu uso. Reduplicava, então, em cadernos manuscritos, parcelas especialmente preciosas, garimpadas na riqueza de suas
estantes.

A atividade manual de copiar, exigindo atenção e paciência, certamente o predispunha aos experimentos lingüísticos, imaginados durante a operação mecânica da escrita. Aquele que rastreia um saber, colhido na distância dos sertões, demonstra, através de seus cadernos, uma atitude alternativa à do cientista. Não é o acerto da informação que lhe interessa, mas uma transposição da mesma para outro ponto de vista: o da experiência cotidiana, que se distingue da observação eventual. Enquanto copista  e copista reflexivo  o escritor comporta-se como o ouvinte de estórias, contadas e aprendidas durante o trabalho. A arte narrativa, preparada no preenchimento gradativo das páginas dos cadernos, situa-se em lugar especial, entre o conhecimento formalizado da biblioteca e a tradição oral. Para constituir temário, léxico e sintaxe, apropriados ao mundo concreto (sensorial-afetivo) da arte, é que servem os cadernos de Guimarães Rosa. Por isso, com certeza, preparando suas próprias viagens por trilhas sertanejas ou organizando o material nelas coletado, foi que o escritor foi enchendo páginas e páginas. Assim aprimorava seu método de inventariar os bens de uma cultura em processo de esquecimento, ao mesmo tempo que inventava instrumentos de escrita capazes de manter essa cultura viva, inserindo-a no patrimônio valorizado pelo presente.

Em versão inicial de roteiro, nunca filmado, sobre “Testamento e morte de Dom Quixote”, o manuscrito de Glauber Rocha enumera animais (e partes do corpo de animais), pessoas, paisagens e edifícios (“Moinho de vento / Planície espanhola parada / Travelling aéreo da planície / Touro / Travelling aéreo sobre o palácio / Quixote / Mãos na pele do touro / No chifre do touro”) para situar a personagem, inserindo os quadros desconexos no contexto dos conflitos históricos (“As cabras / Bois / Carneiros / Cobras / Deitado e as mulheres nuas por cima dele enquanto faz os comentários / O pastor com uma camponesa dizendo um poema espanhol / Travelling que desce e sobe falando de Roma e sua decadência”). Enumerações desse tipo repetem-se em versões variadas, como que buscando um ritmo para a sucessão das imagens, que devem contar a estória. No caderno da marca Theme book, espiral, de capa vermelha  guardado, hoje, no acervo do Tempo Glauber —, o cineasta experimenta, através de listas de imagens possíveis, uma atualização do Quixote, onde o foco narrativo evidencie sua perspectiva latino-americana. Figuras estranhas e familiares devem evocar o fascínio do cavaleiro andante, sempre equivocado, em confronto com a violência do imperialismo e da Igreja inquisitorial. A anotação de elementos desencadeadores de efeito dramático, entre esboços de outros roteiros (“A serpente de sete cabeças”, “América nuestra”), projetos empresariais e contas domésticas, conserva um momento precioso do processo de produção cinematográfica, aquele em que a relação de possibilidades múltiplas, anterior ao trabalho seletivo, revela a complexidade da construção estética. É preciso enorme amplitude de dados para que o recorte e articulação final tenham consistência.

Enquanto a caligrafia nervosa de Glauber ocupa as páginas de cadernos estrangeiros, durante suas viagens em demanda de condições técnicas e políticas para condensar numa linguagem cinematográfica revolucionária a força das diferenças culturais do Terceiro Mundo, os estudos metódicos de Guimarães Rosa também se transcreveram em sua letra redonda, caprichada, indicando um processo lento e rigorosamente planejado de construção literária, desenvolvido, possivelmente dos meados dos anos quarenta até a redação dos grandes livros de 1956. Esses foram os anos de formação profissional do escritor-pesquisador das tradições épicas que, apropriadas em contraponto às experiências da vanguarda, resultaram num contradiscurso crítico aos modelos modernizadores à ocidental.

Se os bichos, enumerados no rascunho de um futuro “Testamento e morte de Dom Quixote”, só têm valor alegórico (valor que se explicita na versão final do roteiro de O leão de sete cabeças: “Eu a vi sair do mar, uma besta com dez testas e dois chifres, e em cada chifre trazia um diadema... e em cada uma das cabeças estavam escritas palavras de blasfêmia... e a besta parecia uma pantera... Tinha patas como um urso e uma goela de leão...”), as listas de animais dos cadernos de estudo de Guimarães Rosa registram dados práticos, específicos e detalhados, sem nenhuma dimensão simbólica. Interessa inventariar as “cores e sinais de cavalos” (“cor de canela: alazão; cor de ouro desmaiado / cor amarelo torrado: baio”) bem como “de bois” (“vinagre: castanho claro, tirante a rubro”) para alimentar a ficção menos com informações naturalistas do que com o saber dos vaqueiros, daqueles cujo conhecimento é matizado da percepção e afeto colhidos na lida cotidiana. No entanto, de perspectivas opostas, os dois inventariantes-artistas acabam alcançando um efeito equivalente. Concedendo-se largo tempo para a pesquisa, Rosa reúne abundantes referências bibliográficas e observações etnográficas; experimenta combinar elementos das listas de diversas formas, transfere, com ligeiras mudanças, as enumerações dos cadernos para folhas datilografadas, onde as indicações de aproveitamento literário se inscrevem nas margens. Todo esse procedimento sistemático, porém, quando transfigurado em poesia, subverte a matriz científica e instaura o ponto de vista da intuição e até, de preferência, o da chamada irracionalidade. A estória se narra como que através dos olhos dos bichos. Já, nos roteiros de Glauber, a força épica, que se contrapõe à racionalidade moderna, é a da magia, da solenidade dos ritos apropriados das culturas selvagens.

Este exercício tateante de aproximação entre as poéticas de Guimarães Rosa e Glauber Rocha, a partir do exame de alguns de seus numerosos cadernos de notas, tem como propósito colocar o inevitável voyerismo do pesquisador de arquivos a serviço do desvendamento dos processos de inscrição do corpo (com suas sensações e impulsos, singulares e momentâneos) na produção da obra  obra que se faz da matéria coletiva, codificada, genérica da cultura. A escolha dos dois artistas se deve, para além da razão óbvia de que seus arquivos pessoais são acessíveis, à afinidade entre os projetos artísticos de ambos (afinidade explícita em vários textos de Glauber, que se empenhou na tarefa de fazer-se herdeiro do legado rosiano), a despeito das diferenças marcantes de temperamento e métodos de trabalho. A escolha de cadernos (ou cadernetas), de preferência a outros suportes de escrita, é que estes, por seu próprio formato, têm de ser manuscritos. E a caligrafia é registro imediato dos movimentos da mão, conservando, na marca das emoções experimentadas (urgência ou calma, empenho ou descaso, simpatia, irritação ou temor diante do assunto em pauta), uma nuance particular no emprego dos signos. Os cadernos manuscritos tomam-se, então, como o lugar onde a autoria começa a configurar-se. Aí, os inventários  estratégias de apoio da memória , sejam cópia de leituras, anotação de observações, registro de imaginação e lembrança, recebem mesmo involuntariamente um traço do instante vivido.

Grande parte dos três cadernos de Rosa, em exame, é ocupada por cópias de trechos lidos pelo escritor. Seu interesse se dirige aos relatos dos viajantes, onde se encontram descritas, com o relevo da curiosidade, a topografia, a flora, a fauna e a população dos sertões. Certamente, preparando-se para suas próprias viagens de pesquisa (a uma fazenda em Paraopeba em 1945, ao Pantanal em 1947, à Bahia, para assistir um encontro de vaqueiros, e pelo interior de Minas, acompanhando uma boiada, ambas em 1952), o escritor colecionava o que lhe podia ser útil, dentre os registros de seus antecessores do século XIX  naturalistas ou exploradores estrangeiros, como Saint Hilaire, Spix e Martius e James Wells, ou ainda brasileiros cultos, como Virgílio Melo Franco cuja carreira de juiz obrigava a longas travessias. Mas as fontes de Rosa são variadas, incluem desde a literatura (Alphonsus de Guimaraens e Afonso Arinos) até os textos de divulgação: este é o caso do folheto da Estrada de Ferro Central do Brasil, Vias brasileiras de comunicação, preparado em 1928 por Max Vasconcellos. Os longos inventários resultantes de tais estudos mostram que a etapa inicial da construção literária rosiana é a tomada de conhecimento, tão minuciosa quanto possível, da matéria de onde surgirá a narração. Duas das novelas de Corpo de baile estruturam-se na forma de ensaios ficcionais sobre a demanda da poesia (“Cara-de-Bronze”) e o “formar-se” de uma canção (“O recado do morro”). Naquela, o vaqueiro Grivo, mandado em missão de rastreador da paisagem dos caminhos sertanejos, relata o cumprimento de sua tarefa, entre os comentários de seus pares; nesta, um naturalista alemão, Seu Alquiste ou Olquiste, acompanhado de guias locais, sai em excursão de estudos (“a tudo quanto enxergava dava um mesmo e engraçado valor: fosse uma pedrinha, uma pedra, um cipó, uma terra de barranco, um passarinho atoa, uma moita de carrapicho, um ninhol de vespos.”), cruzando-se seu trajeto com os deslocamentos de excêntricos loucos e de um poeta popular igualmente empenhados na aquisição e divulgação do conhecimento. Enquanto o cientista observa, experimenta e anota, os doidinhos ouvem a voz profética do Morro da Garça. Dos ecos desta é que se faz a canção. 

No segundo caderno de Glauber Rocha (caderno de marca Conti, nº 830, de capa 
vermelha e folhas grampeadas, também pertencente ao Tempo Glauber), escolhido para esta reflexão, há referência às leituras necessárias ao desenvolvimento dos projetos. Numa espécie de anotação esporádica de diário, inserida entre argumentos e roteiros, encontra-se, no dia 2 de janeiro de 1974: “Li Ciropédia”. Trata-se da obra de Xenofonte, personagem central de “O nascimento dos deuses”, roteiro encomendado pela RAI, a empresa italiana de televisão. Na evidente velocidade da escrita não há tempo para citações de autores antigos nem modernos. A conseqüência dos estudos só se apresenta já transfigurada pela reflexão imaginativa do cineasta, decididamente avesso ao filme histórico de aparência documental, mas decidido a uma apropriação renovadora das obras do passado, interpretando-as de acordo com a conjuntura presente. Num dos primeiros esboços de roteirização das campanhas bélicas narradas em Anábasis e Ciropédia, encontra-se o destaque: “O texto de Xenofonte-Engels explica a formação do Estado Grego”.

Como atestam os dois cadernos examinados, uma enorme dispersão caracterizou a 
atividade de Glauber, entre 1969 e 1975. Há rascunhos referentes a projetos de filme dos mais variados assuntos: o Quixote, as guerras africanas de independência, a máfia siciliana, uma versão livre de A tempestade de Shakespeare e “O nascimento dos deuses”, além de alguns tratamentos de “América nuestra”. A maior parte dos registros desses trabalhos nunca transpôs os limites do caderno. Ficaram nas páginas manuscritas como excesso de informação, descartada como dado independente mas capaz de fertilizar as obras efetivamente desenvolvidas e levadas a público. A proliferação de fábulas roteirizáveis corresponde, no arquivo de Glauber, à feição perdulária dos cadernos de Guimarães Rosa, onde se grafam enormes levantamentos sobre as plantas do cerrado, a arquitetura colonial mineira, um trajeto de ferrovia e ainda se insinuam citações de Toynbee sobre o helenismo, notas referentes a índios no vale do Jequitinhonha e nada menos que expressões na língua Nahuatl do México. Uma simples busca nos arquivos de escritores mostra que se reúne uma enciclopédia para daí extrair um pequeno texto poético. 

Tal enciclopédia babélica, contida nos cadernos, vai sendo filtrada para compor 
cada obra, conforme critérios precisos de escolha e justaposição. Esse procedimento preserva as ruínas de uma sabedoria popular e de uma noção comunitária de rigor estético em confronto com o desejo singularizante de autoria. O corpo manipula o código para roubar-lhe o efeito de consenso. É isso que torna inequívoca a assinatura do texto enquanto garante a permanência produtiva de sua legibilidade, na cadeia da tradição. Os estudos de Guimarães Rosa indicam exatamente o lugar de confronto entre a herança recebida e o impulso pessoal de empregá-la. É o ponto marcado pela sigla m%. Distribuídas desigualmente pelas páginas dos cadernos, as expressões marcadas pela sigla não indicam nenhuma pretensão de inventividade autônoma. Ao contrário, resultam da aproximação inusitada — em grau chocante ou sutil  entre duas ou mais unidades lingüísticas ou fragmentos de narrativa: “perciência”, “os fatos corriam como água”, “cabisduro”, “de leite e de raça”. Organizadas em sintaxe, essas expressões cunhadas na fronteira dos cânones, funcionam como impressões digitais identificadoras. No caso de Guimarães Rosa, é o eco ardilosamente recuperado da oralidade sertaneja que perturba a estabilidade da escritura. Na produção de Glauber, o conflito de fronteira, embora guarde equivalência com o caso rosiano, surge mais agressivo e irregular. Se a trilha sonora de seus filmes sempre inclui os tambores africanos, não é apenas com a sinfonia ou a dicção teatral das personagens que se dá o choque. A cacofonia da metrópole cosmopolita também se faz ouvir, num procedimento de dispersão do foco de interesse, presente desde os diálogos do roteiro: “Quixote sentado com o véu de noiva na mão. / Explodem produtos de publicidade e anúncios de televisão e de filmes americanos à música de ‘Glória, glória, aleluia’”

O movimento construtor da obra se define, nos cadernos de Guimarães Rosa, pelo 
gesto de concentrar o trabalho inventariante na matéria regional: as cidades velhas e os cerrados do interior. As listas da flora, fauna, topografia, arquitetura e urbanismo do sertão é que se tornam o lugar fértil de inserção dos signos da diferença cosmopolita, anteriormente arquivados em outros suportes. O sinal m%, indicador da combinatória dos componentes das listas, como que vivifica, põe em movimento os registros até então estáticos. Pode-se ensaiar uma analogia entre o papel atribuído a Pedro Orósio, protagonista de “O recado do morro”, e o sinal m% usado nos manuscritos. Pedro, um simples enxadeiro geralista, não pesquisa a natureza nem tem poderes mágicos de ouvir a voz da pedra, mas testemunha todas as vezes que se transmite algum fragmento de saber; assim, no desfecho da estória, é ele que performa a canção — sabedoria condensada — que se produz. Também o sinal m%, germe da apropriação autoral do legado coletivo, identifica-se com a potência performática do conhecimento viabilizado pela arte. Trata-se de um tipo de engendramento estético que parte de uma memória local, de ancestralidade familiar, para desautomatizá-la em confronto com o externo, o exótico, o vertiginoso da distância cultural. Já, nos cadernos de Glauber Rocha, o procedimento toma direção contrária: os rascunhos de roteiro compõem-se de inventários virtuais das bibliotecas, tradições e notícias de oriente a ocidente — Xenofonte, ritos africanos, Shakespeare, conflitos mafiosos, Cervantes, guerras anti-coloniais. Essa variedade desconcertante é alinhavada, por sua vez, por uma espécie de núcleo de referências domésticas brasileiras, lugar da performance atualizadora do acervo mundial apropriado. Observando o funcionamento desses processos equivalentes mas inversos, percebe-se que, enquanto Rosa, enfrenta a serialidade padronizada, que reverte no lucro da significação óbvia e imediata, confrontando-a com a repetição vagarosa mas personalizada do artesanato, Glauber desencadeia com mais violência a mesma operação crítica, sem recorrer ao ritmo lento do trabalho manual. Sua estratégia consiste em romper a coerência da história antiga com o raciocínio desconstrutor do presente; daí o emprego de Marx e Engels para apropriar-se da lógica imperialista da Ciropédia de Xenofonte ou de A tempestade de Shakespeare. Além disso, o registro dos argumentos, roteiros e reflexões teórico-políticas dividem as páginas dos cadernos com as contas, os desabafos e os nomes das amadas. Essa convivência insólita é que inviabiliza o resultado eficiente do produto da indústria cinematográfica. A presença inescapável do corpo, que consome, sofre e deseja, deixa sua impressão identificadora na letra gravada — letra que, por sua vez, também resulta na sabedoria poética da canção.


Marília Rothier Cardoso